terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A Tradição Tântrica



Por Fernando Liguori

Abhinavagupta é o principal expoente da filosofia Trika ou Pratyabhijñā, popurlamente conhecida como Śaivismo da Caxemira. O Śaivismo da Caxemira se destaca como o mais proeminente sistema da tradição tântrica e Abhinavagupta seu maior expoente.[1] Como Abhinava é um filósofo tântrico, é relevante, mesmo necessário, prover uma introdução a cultura tântrica. Para demonstrar a importância e o significado de Abhinava, primeiro devemos demonstrar o significado da filosofia tântrica em si.

No público em geral existe uma incompreenção ou má compreensão acerca do Tantra. Se acredita que a execução de práticas tântricas como o uso de fórmulas mágicas ou mantras, invocações de espíritos e deidades místicas pode-se adquirir, como resultado, poderes mágicos (siddhis) e experiências inquietantes. Mas este entendimento acerca do Tantra é uma atitude tola, ingênua, infantil, pois o Tantra é uma cultura ampla que abrange todos os aspectos da vida. A tradição possui uma concepção particular da Realidade e estilo de vida. Ela apresenta um arranjo de valores que por um lado são eticamente corretos e por outro, prazerosos e satisfatórios ao indivíduo; portanto, é uma filosofia prática. Baseados na experiência indutiva (āgama ou āgamana) dos videntes e yogīs, o que foi largamente verificado por uma longa tradição de experimentação, a sabedoria tântrica forma a base para uma vida feliz e saudável, tanto para o indivíduo quanto para sociedade. O Tantra demonstra em como aceitar e utilizar o mundo e as circunstâncias do dia-a-dia de forma a se tornarem meios para auto-realização. Ele apresenta uma visão integral da vida que sintetiza o prazer (bhoga) e a liberação (mokṣa), assim como o envolvimento com o mundo (pravṛtti) e o caminho da renúncia (nivṛtti). O Tantra advoga um tipo especial de Yoga que vê tudo como sagrado e bom. A mensagem do Tantra é tanto adequada para a era em que vivemos quanto intemporal.

Outro entendimento incorreto, muito comum entre os acadêmicos, é que a tradição vêdica somente forma a tendência básica da cultura indiana e que a tradição tântrica seja uma corrente tangencial, a margem social ou mesmo degenerada e pervertida. Esse é um mal entendido colossal e nunca esteve tão longe da verdade. As āgamas ou tantras possuem uma importância equivalente aos vedas na formação da cultura indiana. A tradição tântrica possui algo muito importante a dizer e isso não deveria ser ignorado se é que desejamos ter uma visão completa da filosofia, religião e cultura da Índia.

Tanto os vedas (nigama) quanto os tantras (āgama) têm um caráter revelatório, pertencentes a um conhecimento da realidade que é extra-empírico ou esotérico. Se isso é real, porque precisamos dos tantras se já existem os vedas? Os tantras são redundantes ou trazem uma menagem diferente? Lado a lado com os vedas, os tantras possuem um significado especial, um significado que complementa os vedas. De acordo com os vedas e os tantras, a Realidade Última é Consciência (citi ou saṃvit), conhecida pelo nome de Brahman ou Śiva. A natureza dessa Consciência é tanto conhecimento (jñāna) e atividade ou dinamismo (kriyā) e é este aspecto dinâmico da Relidade que é responsável pela manifestação do mundo. Este conceito de dinamismo, embora não explicitamente explicado, está implicitamente presente nos vedas e nas upaniṣads e o implícito é feito explícito nos tantras. A elocução das upaniṣads concernente a Criação claramente sugerem a existência de um princípio dinâmico em Brahman. É dito nas upaniṣads que o mundo saiu ou foi emanado de Brahman[2] e que Ele quis: deixe que eu me torne muitos e reproduza.[3] Estas declarações sugerem kriyā ou spanda. A declaração de que todas as coisas vêm da própria bem-aventurança[4] se refere em termos inequívocos a spanda. Tais declarações não podem ser explicadas como fábulas ou fantasias míticas (ākhyāyikās) como os vedantins o fazem.[5]

Portanto, as upaniṣads aceitam o aspecto dinâmico da Realidade, mas elas não explicam completamente este dinamismo. Mas essa tarefa foi cumprida pelos tantras. Nos tantras, o dinamismo da Realidade foi completamente explanado; o aspecto imanente de Brahman foi trazido à tona. Como resultado, no Tantra há uma atitude extremamente positiva em relação a Criação.

Os tantras complementam os vedas em um outro sentido. O Veda é chamado de nigama ou nigamana, que significa dedução. O Tantra é chamado de āgama ou āgamana, que significa indução. Acredita-se que o Veda foi revelado de uma fonte superior – os videntes não eram os autores dos vedas, eles apenas os recebiam ou os percebiam. Portanto, as declarações contidas no Veda têm de ser aceitas como premissas das quais conclusões foram deduzidas. Então o conhecimento vêdico são deduções (nigamana) provindas de premissas reveladas. O Tantra, por outro lado, se baseia na evidência da experiência dos videntes e yogīs. É uma tradição yogī. Abhinavagupta dá o nome de anubhava-sampradāya, a tradição da experiência.[6]

Não estou dizendo que o Veda não acredita na verificação do conhecimento revelado ou que o Tantra não acredita na revelação. Ambos acreditam em ambos, mas o conhecimento vêdico vem principalmente do processo de revelação, enquanto que o conhecimento tântrico vem através da experiência. Na tradição indiana, revelação e experiência são consideradas complementares – o que é revelado pode ser confirmado pela experiência. O conhecimento vêdico é confirmado na experiência e esta confirmação experimental é a função do Tantra. Neste sentido, Tantra (āgama) é complementar ao Veda (nigama).

A forma externa do Tantra sugere que ele foi revelado pelo Senhor Śiva, da maneira em que é apresentado o seu diálogo com Pārvatī, sua consorte. Portanto é possível conceber o Tantra como uma revelação, mas a natureza especial do Tantra é que ele é baseado na experiência. Os videntes e yogīs experimentaram a verdade e o Tantra pode ser tido como o registro de suas experiências, sendo o diálogo entre Śiva e Pārvatī um artifício literário cuja intenção é tornar atraente este registro.

Abhinavagupta interpreta o diálogo entre Śiva e Pārvatī como um diálogo dentro de nossa própria consciência, entre os dois níveis de consciência. Ele diz: O Ser, que é alto-luminoso e que está presente em todas as formas, tanto questiona e responde a si mesmo como se estivesse dividindo a si mesmo como inquiridor e inquirido, mas ao mesmo tempo.[7] Também é dito que o Senhor Śiva foi quem, tomando a forma de professor e discípulo, revelou o Tantra por meio de perguntas e respostas.[8] Portanto, o diálogo é entre o buscador interior e do Ser que responde. Aquele que questiona é o ser inferior (aṇu) e o Ser que responde é Śiva, o Absoluto. A mesma interpretação pode ser dada ao diálogo entre Arjuna e Kṛṣṇa na Bhagavadgītā.[9]

Mesmo que o diálogo fosse compreendido literalmente e o Tantra fosse considerado uma tradição revelatória, não haveria discrepância. As noções gêmeas de que por um lado o Tantra foi revelado por Deus e por outro ele foi experimentado por videntes e yogīs são compatíveis, pois como eu disse acima, o que é revelado pode ser confirmado pela experiência. A tradição tântrica aceita os dois pontos de vista.

Assim, podemos inferir que a tradição tântrica, sendo altamente significante em seu próprio contexto, é também complementar a tradição vêdica das upaniṣads. As ideias tântricas que estão implícitas e às vezes explicitamente expressas nos vedas e nas upaniṣads, estão completamente reveladas nos tantras. Portanto, Veda e Tantra formam a mesma linha de pensamento quando olhamos mais atentamente. Aqueles que compilaram os tantras em um período pós-vêdico[10] estavam conscientes dessa continuidade e unicidade entre as tradições vêdica e tântrica; eles deixaram isso bem claro nas escrituras, está lá, para todos terem acesso. No Kulārṇava-tantra o Senhor Śiva diz a sua consorte, Pārvatī: Os seis sistemas da filosofia vêdica são os membros do meu corpo como os pés, estômago, mãos e cabeça; aqueles que os diferencia está desmembrando meu corpo. E todos estes são os seis membros do Kula; portanto, ó minha amada, conheça a disciplina vêdica para se tornar uma kaulika tāntrika.[11]

O Tanta não desfruta o status de ser complemetar ao Veda. Seu complemento é apenas incidental. De fato, o Tantra tem um status autônomo e idenpendente. Seria bastante rasoável ver o início da tradição tântrica no tempo em que os videntes, sem nenhuma fidelidade ao Veda, independentemente questionavam a vida, fazendo investigações práticas na busca da consciência e finalmente encontando suas respostas. As descobertas dos videntes tântricos complementa o conhecimento vêdico ou qualquer outra tradição, mas da mesma maneira, incidental. O significado da tradição tântrica reside não em seu complemento ao Veda ou qualquer outra tradição, mas no seu potencial automono como uma filosofia de vida completa e perfeita.

De alguma maneira, o Tantra é mais completo e mais importante que o Veda. A razão por trás desta declarasçao é simples. O Tantra é o Veda mais o Tantra; o Veda é o Veda mais o Tantra em sua forma implícita. Quer dizer, o Tantra, além de sua própria sabedoria, incorporta completamente a sabedoria do Veda, mas o Veda contém a sabedoria do Tantra apenas na forma implícita e requer que o Tantra a faça explícita.

Além do mais, os ensinos das āgamas são epistemologicamente mais sólidos do que os ensinos do nigama. O que é obtido pela experiência é conhecimento científico e ele é confirmado por si mesmo, ele não precisa da revelação para confirmá-lo. Ao contrário, a revelação requer a experiência para sua confirmação. Revelação sem experiência permanece como um objeto de fé e não se transforma em conhecimento. A confirmação vem da experiência, não da revelação.

O Tantra pode ser chamado de ciência e ao chamar o Tantra de ciência, não estou mudando o significado essencial do termo «ciência» e nem o utilizando incorretamente. A razão é o princípio geral que subjaz o método científico. Ciência é o estudo racional de qualquer coisa. A razão torna claro que o estudo baseado na especulação ou na fé não pode ser seguro; nós só podemos depender daquilo que podemos observar e cognizar. Portanto, a ciência não se baseia na fé ou na especulação, mas na experiência ou cognição.[12] A razão também deixa claro que normalmente nós só possuímos um modo de experiência, que é tanto empírico como sensorial. Experiência no contexto da ciência significa experiência empírica. Portanto, a ciência também pode ser definida coo um estudo empírico.

Mas utilizando a mesma faculdade da razão, torna-se claro que a ciência é baseada na experiência empírica não pela definição mas simplesmente porque no presente a ciência sabe de nenhum modo de experiência que não seja empírica. Se outro modo de experiência for descoberto, não haverá hesitação por parte de ninguém em chamá-lo de cintífico. Então o único obstáculo seria provar que a experiência é genuína e não um devaneio, uma alucinação ou uma ilusão. Ela se torna científica pela virtude de ser uma experiência.

O Tantra é baseado na experiência dos videntes, yogīs e experimentos espirituais. A eles é solicitado investigar a natureza interior e os potenciais da humanidade, fazendo amplos experimentos tanto no nível individual quanto no social. Seu laboratório é o ser humano e, por extenção, a sociedade. Eles não possuem métodos modernos ou facilidades para o registro dos ensinamentos, processo de arquivo de dados; mas eles têm o seu próprio método particular. A fim de registrar suas descobertas de forma agradável e interessante, não adotam a linguágem científica prosaica, mas expressam suas descobertas em termos poéticos utilizando metáforas, símbolos e alegorias.

As descobertas dos videntes tântricos foram verificadas e confirmadas por uma duradoura tradição de yogīs que perciste até os dias de hoje. Qualquer um pode verificar a verdade destes resultados por si mesmo e isso não envolve risco algum. Assim, o Tantra é uma ciência – uma ciência espiritual. Da mesma maneira que existe a ciência material, existe também a ciência espiritual, cuja metodologia é a investigação espiritual. A ciência material tem a tecnologia como uma fórmula de aplicação. Da mesma maneira, a ciência espiritual também tem uma tecnologia e essa tecnologia é chamada de Yoga. O Tantra apresenta o Yoga de uma forma bem variada. Da mesma maneira que a tecnologia da ciência material é utilizada nos mais diversos campos, o yoga tântrico, a tecnologia da ciência espiritual, é aplicado nas mais distintas áreas da natureza humana.

Não devemos nos ocupar pensando que tudo o que foi escrito no extenso corpo dos tantras foi baseado na experiência somente. Da mesma maneira que nem tudo o que está escrito nos vedas é revelação, nem tudo o que está escrito nos tantras é experiência. Os textos tântricos também contêm muito material hipotético, hiperbólico ou até mesmo irrelevante. Se formos ter uma visão realista do Tantra sem nenhum tipo de apego sentimental indevido aos textos tântricos, devemos cuidadosamente extirpar elementos desnecessários para compreender a verdadeira posição tântrica.

Não há dúvida de que a razão seja a única ferramenta disponível para cumprir a tarefa e o único critério de avaliação. Nem o sobrenatural se opõe a razão. Estar além da razão significa ser incognoscível pela razão, não pelo irracional ou anti-racional. Portanto, a razão é a melhor ferramenta e o melhor critério para determinar a real intenção do Tantra, da mesma maneira que é a melhor ferramenta para julgar qualquer coisa. Mesmo quando aceitamos a revelação (śruti), o fazemos porque a razão nos diz que não podemos conhecer ou experienciar a Realidade através da razão ou a percepção sensorial. É apenas pela utilização da razão que nos tornamos conscientes das limitações da razão em si e reconhecemos a necessidade de aceitar a revelação. Que a Realidade está além da razão está claro pela própria razão. A razão é requerida não apenas para tornar a revelação inteligível, mas por nos fazer conscientes do caráter da revelação em primeiro lugar.

A posição do Tantra soa não somente lógica e epistemológica, mas também ontológica e axiológica. O Tantra provê uma visão ampla do mundo, satisfatoriamente explicando todos os aspectos da Realidade. Seu conceito metafísico de consciência dinâmica (cit-śakti) com liberdade (svātantrya) como sua natureza, consistentemente explica todos os problemas da Realidade, incluindo a vida e o mundo. As descobertas tântricas apontam o fenômeno da consciência, que chamamos de Ser ou Puro Eu, que aparece em um nível superficial como a ponta de uma grande Realidade que jaz profunda em nosso interior. Consciência é como um iceberg, apenas uma pequena porção dela é visível sobre a superfície ou como um poço artesiano, que está conectado invisivelmente a um profundo e vasto reservatório de água. Se aceitarmos essa premissa, significa que podemnos explorar os níveis profundos de nossa realidade interna passo-a-passo. A auto-realização pode ser alcançada gradualmente. Mesmo em nosso estado normal de consciência temos um grau determinado de auto-realização, pois o poder da consciência (cit-śakti ou kuṇḍalinī-śakti) já está operando em nós na forma das faculdades mentais e processos fisiológicos. É óbvio que esta pequena porção da Consciência irá se manifestar de maneira distinta nas mais variadas pessoas, seja naturalmente ou pelo processo deliberado de descoberta das qualidades da Consciência.[13] Nós podemos estender este processo a manifestação completa da Consciência, auto-realização ou a obtenção de um elevado estado natural de espiritualidade.

A contribuição mais significante do Tantra é no campo axiológico – o campo dos valores. Os videntes tântricos, como os videntes indianos em geral, estavam conscientes desde os primórdios que existem dois tipos básicos de valores na vida. Os valores éticos ou morais por um lado e os valores prazerosos ou que proporcionam felicidade por outro. Os valores morais morais são tecnicamente chamados de śreya, quer dizer, aquilo que é bom; os valores que proporcionam felicidade ou prazer são tecnicamente chamados de preya, quer dizer, aquilo que é prazeroso. No sistema indiano existem quatro valores fundamentais: dharma (satisfação moral), artha (satisfação monetária), kāma (satisfação dos desejos) e mokṣa (auto-realização). Moralidade está conectada aquilo que é bom; a satisfação monetária e dos desejos está conectada aquilo que é prazeroso. Os antigos videntes também estavam conscientes de que na vida existe uma dicotomia muito grande entre aquilo que é bom e aquilo que é prazeroso. As pessoas têm de minar ou suprimir totalmente aquilo que é prazeroso em detrimento daquilo que é bom. Os videntes concluiram portanto que valores que são meramente «bons» sem nenhum elemento de «prazer» são claramente inadequados, nada práticos.

Portanto, os videntes tântricos descobriram um sistema que sintetiza aquilo que é bom e aquilo que é prazeroso, verdade e beleza ou o bom em nós mesmos e o bom nos outros. Eles encontraram a resposta naquilo que chamamos de auto-realização, mokṣa. Mokṣa não é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos na vida. Todos os poderes ou talentos para se trabalhar eficientemente e graciosamente em todos os aspectos da vida vêm do Ser, assim como todo poder elétrico que movimenta o ventilador e ascende a lâmpada vem da usina hidroelétrica. Toda criatividade, artística ou não, vem do Ser. É a partir do Ser que o entendimento iluminado sobre qualquer coisa vem a mente como um lampejo espontâneo (pratibhā). Portanto, quanto mais sintonizados com o Ser estivermos, mais seus poderes florescerão. Portanto, uma pessoa auto-realizada é um professor melhor, um filósofo melhor, um cientista melhor, um líder melhor, um empresário melhor, um gerente melhor etc.

A auto-realização incorpora em si mesma tanto a moralidade quanto a satisfação dos desejos. A moralidade está naturalmente presente em mokṣa por duas razões: primeiro, o Ser que é alcançado em mokṣa é naturalmente bom. É por isso que ele se chama Śiva, que literalmente significa o benigno ou o auspicioso. É ilógico pensar que más ações poderiam surgir de um ser naturalmente benigno. Rāmakṛṣṇa Paramahaṃsa costumava dizer que assim como apenas mel pode cair de um favo de mel, apenas boas ações podem vir do estado-Śiva, quer dizer, o estado de consciência bhairávica.

Segundo, no estado de mokṣa ou auto-realização, o auto-realizado se sente em unidade com o todo, com tudo o que existe. Ele se torna um com tudo.[14] É natural que tal pessoa faça o bem para todos.[15] O que obstrui o Ser é a ignorância (ajñāna). A ignorância é definida como senso de dualidade (dvaita-prathā ou bheda-buddha).[16] É o sentido de que algo ou alguém é o outro.[17] Quando o senso de dualidade é dissipado e o auto-realizado reconhece sua unidade com tudo o que é realizado – quer dizer, o amor universal – então uma das características mais essenciais da auto-realização é conquistada.

O sentido de dualidade é a raiz da imoralidade.[18] Uma pessoa só pode explorar alguém quando ela o considera como algo distinto de si mesma. Mas se ela o considerasse como parte de si mesma, como poderia explorá-la? Uma pessoa auto-realizada não explora ou causa prejuízo a ninguém, pois a auto-realização é um estado de perfeito amor universal. Ao contrário, um auto-realizado ajuda a todos, pois isso é um estado espontâneo de sua moralidade.

Portanto, a auto-realização sintetiza tanto a satisfação dos desejos quanto a moralidade, tanto o prazer quanto o que é bom. Na auto-realização, o maior interesse é o bem das pessoas e o bem das pessoas é o bem de si mesmo e isso é tanto bom quanto prazeroso. Invocando o peso da experiência, me arrisco a dizer que o amor é um dos maiores exemplos ou fenômenos dessa síntese. No amor, o bom para o amante é o bom para o ser amado, o amor se torna um. Uma mãe, por exemplo, sente sua unidade com o filho e sente feclicidade pela felicidade do filho. O amor naturalmente proporciona boas ações por parte do amante em relação ao amado. Contudo, além de promover essa atividade benéfica em relação a pessoa amada, o amor provê satisfação incomensurável, prazer e alegria a pessoa amada. O arrebatamento do amor é tão profundo que apenas o verdadeiro amante pode compreendê-lo em toda sua inteireza. Usando uma frase de Shakespeare, a benção que ele dá é a que ele recebe. O amor é a verdadeira natureza do Ser e um auto-realizado é um verdadeiro amante. O amor é a principal característica dos santos e sábios que alcançaram a auto-realização. Quanto mais realizamos o Ser, maior será o fluxo natural do amor em nós.

A singularidade da concepção tântrica de mokṣa ou auto-realização é dupla: primeiro, de acordo com o Tantra, mokṣa não é um valor transcendental, mas o alicerce de todos os sucessos e conquistas em todos os aspectos da vida; segundo, de acordo com o Tantra, mokṣa não consiste meramente de aquilo que é bom, mas de aquilo que é prazeroso, é uma síntese de ambos. Essa noção de mokṣa modifica a classificação popular indiana dos quatro valores inerentes a vida. De acordo com a classificação popular, dinheiro (artha) e satisfação dos desejo (kāma) estão sob aquilo que é prazeroso e a moralidade (dharma) e auto realização (mokṣa) estão sob aquilo que é bom. Mas de acordo com a classificação tântrica, apenas a moralidade está sob aquilo que é bom, na medida em que mokṣa é a síntese de tanto o que é bom quanto o que prazeroso, então é um valor superior.


[1] Abhinavagupta foi o autor do Tantrāloka (A Luz sobre os Tantras) no qual ele sistematiza a filosofia e religião tântrica de maneira racional e coerente. Portanto, o Tantrāloka é a apresentação mais lógica e racional da filosofia tântrica.
[2] योतोवा इमानि भूतनी जायते, TaitUp, III:1.
[3] तदैक्षत बहुस्याम् प्रजायेयेति, ChānUp, VI:2.3.
[4] आनन्दाद्ध्येव खल्विमानि भूतनी जायन्ते, TaitUp, III:6.
[5] Além do mais, a dourada Umā ou Pārvatī (umā-haimavatī) que aparece na famosa história de Yakṣa na Kena-upaniṣad sugere que Brahman é Śiva e Umā é Śakti. Na tradição tântrica, Umā é sinônimo de Śakti.
[6] अनुभव सम्प्रदायोपदेश परिशीलनेन, PTv, p. 161.
[7] स्वात्मा सर्वभावस्वभावः स्वयं प्रकाशमानः स्वात्मानमेव स्वात्माविभिन्नेन प्रश्नप्रतिवचनात् प्रष्टृ स्वात्ममयेन अहंतया चमत्कुर्वन् विमृशति, PTv, p. 14-15.
[8] गुरुशिष्यपदे स्थित्वा स्वयं देवो सदाशिव्ः।
पूर्वोत्तरपदैर्वाक्यैः तन्त्रं समवतारयत्॥, PTv, p. 12.
[9] Veja Gītārtha-saṃgraha. O comentário tântrico da Bhagavadgītā por Abhinavagupa.
[10] A tradição tântrica já existia em sua forma oral já nos tempos do Veda, mas foi somente no período pós-vêdico que sua doutrina foi compilada nas escrituras.
[11] षड्दर्सन्नानि मेङ्गानि पादौ कुक्षिः करौ शिरः।
तेषु भेदन्तु यः कुर्यान्ममाङ्गं चेदयत्तु सः॥
एतान्येव कुलस्यापि षडञ्गानि भवन्ति हि।
तस्माद् वेदात्मकं शास्त्रं विद्धि कौलात्मकं प्रिये॥, KT, II: 84-85.
[12] Abordaremos este assunto novamente nos próximos estudos do Tantrāloka.
[13] Infelizmente nos encontramos a mercê da falta de palavras para determinar conceitos inteligíveis. Cit ou citi no português traduzimos como consciência, uma palavra que implica relação sujeito-objeto, portanto, dualidade. Mas cit é não-relação. Isso significa que ela tem relação imediata onde o eu e o isto são indistinguíveis.
[14] सर्वभूतात्मभूतात्मा, Bh.G, V: 7.
[15] सर्वभूतहिते रताह्, Bh.G, V: 25.
[16] द्वैतप्रथा तदज्ञानं तुच्चत्वाद् बन्द उच्यते, TĀ, I: 30.
[17] कर्णात् कर्णोपदेशेन सम्प्राप्तमवनीतलम्, YGHṛ, I: 3. Veja também षैवादीनि रहस्यानि उर्वमासन्महात्मनाम् ऋषीणां वक्त्रकुहरे, ŚDṛ, VII: 107.
[18] Abhinava costumava apontar dualidade como egoísmo em seus escritos sobre estética.

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